Nando Reis acreditava que só ele tinha reparado, mas está aí, escancarado nos jornais, na lama dos desastres, na repugnância dos políticos, no comportamento bizarro de alguns seres humanos e no discurso descrente de outros tantos… Nosso mundo está de ponta cabeça; e não é de hoje. Sempre que assisto filmes sobre o Holocausto – confesso que ao final de cada um, acabo me perguntando por que ainda o faço – me contamino com um sentimento de tristeza e desânimo profundos em relação à nossa raça humana.
No final de semana passado, no entanto, um filme sobre a Segunda Guerra me tocou de uma maneira diferente. “O Coração Corajoso de Irena Sendler” conta a história de uma polaca que, admirável e bravamente, arriscou a própria vida, inúmeras vezes, para salvar a de mais de 2.500 judeus, em sua maioria crianças, contrabandeando-os para fora do Gueto de Varsóvia. No final do filme, a verdadeira Irena, uma senhora já de bastante idade, faz questão de salientar o papel das centenas de mães polonesas que, do mesmo modo, arriscaram a própria vida, e também a de suas famílias, recebendo essas crianças judias em seus lares, amando-as e cuidando delas como se fossem seus próprios filhos.
Aprendemos desde sempre que a guerra é um periodo de horror e tristeza, de comportamento brutal e desumano. Quanto a isso, não há a menor dúvida. Mas em tempos como esse, em meio a tanta dor e desalento, tanto caos e barbárie, fico aqui me perguntando… Quantos seres humanos, de maneira anônima e despretensiosa, tiveram a chance de revelar o melhor de si, no sentido mais profundo e espiritual da expressão? Quantas pessoas tiveram a chance de se aproximar um pouco mais da perfeição de sua essência boa e divina, aquela em que escolho continuar acreditando, apesar de tanta obscuridade?
Ainda outro dia, li a história do pai de uma criança deficiente que, durante um jantar para angariar fundos na escola do filho, perguntou diante de uma estarrecida plateia de pais: “Tudo que Deus faz é com perfeição. Mas onde está a perfeição em meu filho? Ele não entende coisas que as outras crianças entendem, não consegue lembrar de fatos e números como as outras crianças fazem. Onde está perfeição de Deus?”. O público, comovido com a aflição do pai e, ao mesmo tempo, chocado com sua declaração, aguardou em silêncio que ele continuasse. “Eu acredito que quando Deus traz uma criança como essa ao mundo, a perfeição que ele busca está na maneira como as pessoas reagem a essa criança”. Seguiu, então, contando a história do dia em que alguns meninos decidiram aceitar o pedido tímido do garoto deficiente para jogar alguns minutos em seu time de beisebol, ainda que tivessem uma grande chance de virar o jogo que estava praticamente empatado. Tomados por um sentimento de empatia e compaixão, permitiram que o garoto não apenas jogasse, mas que também se tornasse o grande herói daquela vitória manipulada por ambos os times. “Naquele dia”, disse o pai em voz baixa com lágrimas escorrendo pelo rosto, “aqueles 18 meninos alcançaram seu nível na perfeição de Deus”.
Não é o meu objetivo afirmar qual é a intenção de Deus ao trazer uma criança deficiente ao mundo, muito menos justificar tudo de mal que acontece ao nosso redor, todos os dias, por todos os lados. Minha intenção é lembrar a mim mesma, e a quem mais estiver aberto pra isso, que há sempre uma escolha. Diante de qualquer circunstância, há sempre um lado dessa dualidade infinita que nos eleve a um nível mais próximo do que acreditamos ser Deus ou, simplesmente, do melhor que desejamos ou podemos ser. Como disse o inesquecível e, muitas vezes, incompreendido, Raul Seixas: “Ói, olha o mal. Vem de braços e abraços com o bem num romance astral.” O bem, necessariamente, vem sempre acompanhado da ideia do mal. Do contrário, não haveria a menor razão para descrevê-lo como tal.
Por mais desanimador que o nosso cenário atual possa parecer, meu desejo é que nos inspiremos nas mães polonesas recebendo e amando crianças judias como suas próprias, ou naqueles “anjos” em forma de prisioneiros judeus nos campos de concentração que dividiam seu último pedaço de pão com um outro prisioneiro moribundo. Que nos inspiremos nas centenas, ou milhares, de voluntários que se locomovem aos locais de tragédias e, diante de tanta tristeza, levam o amor, a compaixão e a solidariedade. Meu desejo é que, ao invés de nos abatermos com a realidade que, muitas vezes, tristemente nos permeia, a usemos para nos elevarmos através de nossas escolhas e ações à perfeição de Deus. Perfeição essa que talvez jamais conseguiremos compreender.
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Comments 6
Fantástica essa reflexão Lysiane! Nossa essencia é bondade, é amor. Mas por vezes ela está encoberta pelo ego, pelo prazer, pela satisfação, e esquecemos de olhar ao nosso redor, de abrir os olhos e enxergar com esse amor, que é nossa verdade. Que assim seja: que nos inspiremos, cada vez mais, em agir em prol de todos. Afinal, somos todos um!
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Oi Bruna,
Muito obrigada pelo comentário e por ter compartilhado meu texto no seu blog. Fiquei feliz e me sinto honrada por isso.
Um beijo grande! <3
Lysiane
Não conhecia seu blog ainda, até vê-lo na indicação de leitura no blog da Bruna… e já adorei!
Me emocionei com a história do pai do menino com deficiência, e a história do holocausto me lembrou muito o mantra Om Mani Padme Hum, que significa que da lama nasce a flor de lótus. Ou seja, são nos momentos menos propícios que temos a oportunidade de mostrarmos nossa luz.
Seu blog já está no meu feedly, vou te acompanhar daqui pra frente.
Beijos e continue escrevendo! <3
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Oi Camille,
Muito obrigada, querida, pelo comentário carinhoso. Fico feliz que tenha gostado do blog e que vá me acompanhar daqui pra frente.
A flor de lótus foi muito bem lembrada, poderia tê-la citado no texto! 🙂
Um beijo e tudo de bom pra você! <3
Lysiane.
Adorei. Parabéns. Saudade.
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